quarta-feira, 11 de abril de 2018

História trágico-marítima (CCXLIX)


Leixões 1914 - Dias de temporal

Matosinhos, 23 – O temporal desabrido dos últimos dias tem sido verdadeiramente destruidor. Quem vive à beira-mar assiste sempre, nesta época invernosa, aos espectáculos, por vezes imponentes e majestosos, do mar a arremeter contra a praia, despedaçando-se as ondas alterosas como montanhas, nos rochedos que a orlam.
É lancinante o quadro quando, lá ao largo, se depara ao observador qualquer embarcação lutando contra a ventania e contra as ondas que parecem tudo submergir.
De terra acompanham-se os movimentos das embarcações que demandam a costa na ânsia de fugir ao perigo. O espectáculo, porém, ainda mais interessa aqui, onde temos o «porto de abrigo» de Leixões, porto sem dúvida cheio de defeitos e de deficiências, mas que, assim mesmo, presta importantes serviços à navegação e ao comércio.
O dia de ontem foi de constrangimento para quem assistiu ao espectáculo comovente de navios que do alto mar demandavam o porto e que viam gorada a possibilidade de entrada sem iminente risco de vidas e de embarcações, tal a agitação do mar na entrada do porto.

Cerca do meio-dia demandou a barra a chalupa “Valadares 1º”, por não poder continuar na sua rota. Este navio dirigia-se para Vila Real de Santo António com carregamento de madeira, tendo saído de Viana do Castelo. Devido ao temporal, não conseguir avançar a partir da altura da Figueira da Foz e, como o mau tempo não abrandasse, resolveu o mestre, sr. Luiz Cândido Machado entrar em Leixões, embora os sinais lhe não permitissem. Aproando à vaga, foi levado pelo vento e ressaca foi levado para o molhe sul, e tão encostado entrou, que o tripulante moço João António Caravela, de Viana do Castelo, que ia num dos mastros, saltou para o molhe sem o menor perigo. O navio entrou sem novidade, mas tem avaria a estibordo junto à popa.


Características da chalupa “Valadares 1º”
Armador: João A.M. Viana Júnior, Viana do Castelo
Nº Oficial: 52 - Iic: H.G.R.T. - Porto de registo: Viana do Castelo
Construtor: António Dias dos Santos, Fão, 18.10.1899
Arqueação: Tab 123,82 tons - Tab 117,63 tons
Dimensões: Pp 26,04 mts - Boca 7,46 mts - Pontal 2,91 mts
Propulsão: À vela
Capitão: Luiz Cândido Machado

Cerca das 10 horas, demandou a entrada de Leixões o iate “Flor de Setúbal”, que vinha acossado de temporal e quase completamente desarvorado. Também entrou encostado ao molhe sul a ponto de, com os mastros, partir os martelos do sinal sonoro ali colocados, o cabo condutor do pára-raios e a cornija do farol.
O faroleiro que a essa hora estava no seu posto, sr. Manuel José Gonçalves Chocha Júnior, fez os sinais para terra e gritou quanto pode para bordo, que se aguentassem enquanto pudessem, por os socorros não deviam demorar e, não confiando nos sinais que fizera, receoso de não terem sido vistos, veio por terra a Leça prevenir a Capitania, mas a esse tempo já o salva-vidas, guiado pelo patrão Aveiro tinha saído, correspondendo aos sinais que o faroleiro tinha feito.
Não é possível calcular-se o perigo em que se viram os tripulantes do “Flor de Setúbal” e a sua ânsia quando o navio bateu nas pedras do enrocamento do molhe sul; porque imediatamente saltaram para o bote de bordo quatro tripulantes, que seguiram para terra aproveitando-se os três restantes do salva-vidas em que se salvaram.
O navio, que não foi ao fundo por ter a bordo um carregamento de madeira, veio encalhar esta manhã na praia do Senhor do Padrão. A carga, no valor aproximado de oitocentos mil réis, está coberta pela Companhia de Seguros Atlântica, e imediatamente um empregado superior desta Companhia se apresentou ali a tratar dos salvados, para ser feita a liquidação do sinistro.
O mestre ou capitão do “Flor de Setúbal” é o sr. José Joaquim Machado Júnior, de Ílhavo, e o navio pertence aos srs. Martins & Carneiro.
Os Bombeiros Voluntários também compareceram no local do sinistro, em virtude de lhes ter sido dado o aviso pelo faroleiro sr. Chocha Júnior. Foi também grande o perigo que correu a vida deste arrojado faroleiro, que, esquecendo-se que uma onda o podia envolver, quer quando estava na varanda do farol a fazer os sinais para terra, quer quando veio pessoalmente pedir os socorros, só tendo em vista o salvamento das vidas dos tripulantes do navio.


Características do iate “Flor de Setúbal”
Armador: Martins & Carneiro, Porto
Nº Oficial: Não tem - Iic: H.B.L.D. - Porto de registo: Porto
Construtor: Não identificado, Vila do Conde, 04.11.1872
Arqueação: Tab 113,10 tons - Tal 107,44 tons
Dimensões: Pp 25,17 mts - Boca 6,22 mts - Pontal 2,95 mts
Propulsão: À vela
Capitão: José Joaquim Machado Júnior

Ontem, de dia, foi visto ao largo o iate “Cysne”, que, não podendo vencer a viagem rumo a Leixões, se amarrou, ignorando-se o seu destino. Hoje constou que tinha naufragado em Espinho, mas parece não se confirmar o boato.
Dentro da bacia o temporal fez-se sentir bastante, tendo garrado a laita (a) “Castro”, com 3.000 sacos de açúcar, que tinha recebido do vapor austríaco “Nagy Lagos”.
Entretanto, a hélice do rebocador “Tritão”, que foi prestar socorro à laita, foi envolvida pela corrente que a mesma tinha de amarração, ficando desde logo impossibilitado de se mover.
Ontem e hoje decorrem necessárias diligências para desenvencilhar a corrente da hélice do “Tritão”, mas ainda nada foi conseguido.
Também se esbarrou no enrocamento do molhe norte a laita “Douro”, que se encontra carregada com carvão e afundaram-se igualmente bastantes barcos pequenos, que não puderam manter-se ante a intensidade do temporal.
O iate “Flor de Setúbal”, que está encalhado na praia do Senhor do Padrão, tinha saído na quarta-feira para Portimão, mas devido ao mau tempo veio arribado a Leixões.
(In jornal “Comércio do Porto”, terça-feira, 24 de Fevereiro de 1914)
(a) Aportuguesamento do inglês «lighter», indiciando tratar-se de navio previamente desmastreado, utilizado como batelão de carga)

Sem comentários: