sábado, 1 de julho de 2017

História trágico-marítima! (CCXXIII)


O naufrágio do vapor "Mourão", na barra do rio Douro

– Na restinga do Cabedelo, encalhou ontem o vapor “Mourão”
Os 18 homens da sua tripulação foram salvos por meio do cabo
de vai-vem - As mil toneladas de carvão que constituíam a sua
carga,e o vapor consideram-se perdidos - Momentos de ansiedade
O valor dos pescadores da Afurada
O sinistro deu-se pouco depois das 4 horas. E não obstante, poucos minutos depois, toda a cidade tomava conhecimento dele por informes incompletos, é certo; mas que ainda mais exageravam a sua gravidade.
De que se tratava? Um vapor naufragado à entrada da barra - dizia-se. E acrescentava-se com ar terrificante, que a tripulação não podia ser salva, dada a posição em que o navio se encontrava, e a dificuldade de estabelecer socorros eficazes.
No posto de pilotos, construído na barra, vai uma azáfama própria da ocasião. Fora, olhando o Cabedelo, o enorme banco de areia que se estende ao largo, à distância de umas centenas de metros, vê-se um formigueiro de gente; do outro lado do recife, isto é no mar, encontra-se o vapor naufragado, do qual apenas se divisa a mastreação. O povo junta-se na Foz, a ver o salvamento dos náufragos.

Como encalhou o vapor “Mourão”
O vapor “Mourão”, pertencente à firma desta cidade Guilherme Machado & Cª., da rua da Nova Alfândega, vinha de Cardiff com uma carga de mil toneladas de carvão. O navio é de mil e duzentas toneladas e tinha 18 homens de tripulação.
Depois de ter metido o piloto, preparava-se para entrar a barra. Ao largo estavam outros vapores também para entrar. Próximo da embocadura, o leme falhou, por motivo de se ter partido o «galdrope» (1), e o navio, já sem direcção, começou a ser batido pelo mar, a inclinar para a direita, sobre a restinga, até que encalhou, ficando a uma distância da praia de cerca de 40 metros.
Entretanto, o mar era cada vez mais forte. As ondas encrespavam-se, alagavam o vapor de lez a lez, que imobilizado pelo encalhe, constituía já um perigo para as pessoas que dentro dele estavam.
(1) Cabos de aço ou correntes ligados ao leme, nos navios de maior porte, que transmitem o movimento da roda de malaguetas ao leme, para governo do navio. Também é utilizada a designação gualdrope.

O salvamento dos náufragos
Era urgente cuidar da sua salvação. Foi o que fizeram. De bordo tinham já içado a bandeira de socorro.
Do posto de pilotos saiu o pessoal respectivo, com cabos e foguetões. As lanchas depressa alcançaram a restinga. E então, com o auxílio dos pescadores da Afurada, que afluíram em número considerável, a prestar os seus serviços, foram feitas as primeiras diligências para a montagem do cabo. Todos estes trabalhos foram executados prontamente, rapidamente, conforme as circunstâncias o exigiam.
Foi lançado o primeiro foguetão. Nada! O vento arrastou-o para a esquerda, fê-lo cair na água. De bordo a tripulação havia lançado à água bóias com cabos; as ondas arrastaram-nas até à praia, sendo conseguido por este meio fazer a ligação com o vapor. Assim, o cabo de vai-vem foi estabelecido. A cesta foi puxada de bordo, girando suavemente pelo cabo. E começou o salvamento dos náufragos – os 18 homens da tripulação, e mais um, o piloto que conduzia o navio.
O processo pelo cabo de vai-vem é conhecido. Uma grossa corda liga o vapor a terra. Sobre a corda fica uma cesta onde os náufragos se metem; essa cesta é puxada por meio de outro cabo, e neste serviço, que demanda esforço, é que se utilizam bastantes homens.
Quando os primeiros náufragos tomaram lugar na cesta, as pessoas da terra, pescadores da Afurada, gente da Foz, num admirável gesto de altruísmo e de solidariedade, agarrada ao cabo, a pulso, começou a puxar a cesta. O pequeno saco de lona, com os náufragos dentro, aproximava-se de terra. Mais um impulso – e estavam salvos. Todos acorreram para eles. Os náufragos estavam extenuados, e nos olhos estampava-se-lhes o espanto que o perigo da morte lhes causara.
Afagaram-nos, emprestaram-lhes roupas; meteram-nos numa lancha e seguiram com eles para a Foz, onde outros socorros lhes seriam prestados. E a cesta de salvação continua na sua faina. Outros náufragos vieram para terra; os mesmos socorros, os mesmos desvelos, os mesmos abraços. E assim sucessivamente, até final.
O penúltimo homem a sair do vapor foi o piloto da barra, sr. Manuel Pinto da Costa. Quando saiu da cesta foi logo rodeado por muitos dos seus colegas e pelo capitão do porto, sr Lencastre.
O piloto explicou, em duas frases simples, a origem do encalhe: - Não havia nada a fazer. O «galdrope» quebrou e o vapor ficou sem leme. Não havia nada a fazer!
Foi por motivo dessa avaria que o “Mourão”, tocado pelo mar embravecido e alteroso, que fazia, descaiu para a restinga do Cabedelo, ficando com a proa em frente da praia, encalhado e metendo água em grande quantidade.
Depois do piloto foi salvo o capitão – o sr. João Fernandes Matias Queijeira, de 54 anos, natural de Ílhavo. Quando chegou a terra este velho marinheiro, de rosto tostado, aliviou-se do colete de salvação que trazia vestido, e pediu apenas que lhe dessem água:
- Dêem-me água, estou a morrer de sede. Deram-lhe água. Como os outros náufragos, o capitão do “Mourão” foi conduzido para a Foz, numa lancha, sendo acompanhado por muitos amigos, que o abraçavam e felicitavam pelo salvamento dele e da sua gente.

Foto do encalhe do vapor "Mourão", na barra do rio Douro
Imagem de autor desconhecido

Características do vapor “Mourão”
1923-1928
Armador: Guilherme Machado & Cª., Lda., Porto
Nº Oficial: B-175 - Iic: H.M.O.U. - Porto de registo: Porto
Construtor: Nv Werft Gusto, Schiedam, Holanda, 24.06.1918
ex “Zeehond”, Willem van Dam, Roterdão, 1918-1919
ex “Hoogvliet”, Soetermeer Fekkes, Amesterdão, 1919-1923
Arqueação: Tab 743,72 tons - Tal 467,00 tons
Dimensões: Pp 57,35 mts - Boca 9,15 mts - Pontal 4,50 mts
Propulsão: 1 motor compósito - 10 m/h
Equipagem: 18 tripulantes

Outros pormenores
No banco de areia, que é a restinga do Cabedelo, juntou-se uma enorme multidão. Apesar da agitação das águas do rio, na entrada da barra, os caíques conduziram muitas pessoas. O pessoal dos Bombeiros Voluntários Portuenses foi transportado para o local pela lancha gasolina da capitania, não tendo trabalhado, por não ser necessário.
Na Foz, junto ao posto dos pilotos, compareceram também os Bombeiros Voluntários e os Municipais, bem como a Cruz Vermelha.
No Cabedelo assistiu aos trabalhos de salvamento o sr. dr. Mourão, sócio da firma proprietária do vapor. Alguns dos náufragos, como estivessem encharcados e prostrados, foram conduzidos ao hospital da Misericórdia, pelos Bombeiros Voluntários Portuenses, recolhendo à sala de observações. Os outros foram uns para suas casas, outros para casa de pessoas amigas e um deles, por ordem dos proprietários do vapor, para o restaurante Malhão.
Houve, na Foz, varias pessoas ali residentes que ofereceram roupas aos náufragos. Uma dessas pessoas foi a sra. Dª Maria Valado.

Quem são os tripulantes do vapor encalhado
José Fernandes Matias Queijeira, 54 anos, de Ílhavo, capitão; Carlos Domingos Regano, de Ílhavo, imediato; Salustiano Ferreira de Oliveira, o «brasileiro», da Bahia, 1º fogueiro; Abel, do Porto, 2º fogueiro; Filipe Vicente, do Porto, 3º fogueiro; António Francisco, do Porto, chegador; Manuel D. Monteiro, da Madalena, Gaia, chegador; João Fernandes Pinto, de Ílhavo, despenseiro; José Francisco do Bem, de Ílhavo, contra-mestre; Francisco Fernandes Mano, de Ílhavo, marinheiro; João Fernandes Parracho, de Ílhavo, marinheiro; A. Martins, de Viana do Castelo, marinheiro; Mateus Passos, de Viana do Castelo, marinheiro; Augusto Teixeira da Rocha, do Porto, 1º maquinista; Domingos A. Martins, do Porto, 2º maquinista; Laureu, do Porto, 3º maquinista; Domingos Marta, da Vila da Feira, cozinheiro; e Carlos Jaime Martins, da Ilha de S. Miguel, telegrafista.
Os tripulantes que deram entrada no hospital da Misericórdia, com forte comoção e pequenos incómodos são: Parracho, Passos, Mano, Fernandes Pinto e Vicente. O maquinista Teixeira da Rocha, que sofreu fractura nas costelas, foi ali socorrido, recolhendo a casa. Todos estes náufragos foram assistidos pelo sr. dr. José Aroso.

Notas várias
Os livros de bordo foram salvos. Trouxe-os para terra, por incumbência do capitão, o imediato. Também, na oportunidade, foram salvos alguns aparelhos náuticos. Na restinga viam-se latas de bolachas arrojadas à praia, pelo mar.
No banco de areia em frente do qual o “Mourão” está encalhado, era opinião dos técnicos que o vapor estava perdido. Com efeito, a água já o cobria de lado a lado, e o enorme cavername do navio carvoeiro, dava a impressão dum paquiderme estatelado.
Na Foz a multidão era enorme. Foi um verdadeiro espectáculo, em que se misturou o interesse, a ansiedade e a alegria do salvamento.
O “Mourão” e a sua carga estão cobertos pelos seguros.
O salva-vidas de Leixões chegou a sair para a Foz – mas não trabalhou por não ser preciso utilizá-lo. 

O “Mourão” está coberto de água
À meia-noite chegou a informação, recebida do posto de pilotos, que o vapor “Mourão” se encontra coberto de água, mantendo-se no mesmo ponto onde encalhou. É natural que durante a noite a posição do navio se modifique.
(In jornal “Comércio do Porto”, quarta-feira, 11 de Abril de 1928)

O naufrágio do vapor “Mourão”
Não se modificou ainda a posição do vapor carvoeiro “Mourão”, que ante-ontem encalhou na restinga do Cabedelo, devido a ter-se quebrado o «galdrope» do leme. Salva a tripulação, em número de 18 homens, pelo cabo de vai-vem, o vapor ficou inteiramente abandonado, entregue à maresia, com a água a cobrir-lhe o convés, mantendo apenas a mastreação à vista. O “Mourão”, vencido pela procela, parecia estatelado, aguardando o seu fim. Supõe-se que o navio possa estar arrombado pelo fundo. Considera-se o vapor completamente perdido, devendo o seguro, caso o mar o não destrua, tomar conta dos seus destroços.
(In jornal “Comércio do Porto”, quinta-feira, 12 de Abril de 1928)

O naufrágio do vapor “Mourão”
O navio continua na mesma posição
Os tripulantes foram ontem a bordo retirando dali as suas roupas
O “Mourão” considera-se perdido
Não se modificou, durante as ultimas 24 horas, a posição do vapor carvoeiro “Mourão”, que na passada terça-feira encalhou na restinga do Cabedelo, quando pretendia demandar a barra, em virtude de uma forte volta de mar lhe ter quebrado o «galdrope» do leme.
Ontem foi ainda muita gente à Foz e ao Cabedelo presenciar o espectáculo do vapor encalhado, e cuja posição em nada se modificou. Na praia, onde se encontrava a Guarda-fiscal, viam-se alguns despojos do vapor, arremessados ali pelo mar, tais como várias peças de madeira, sobretudo carvão que fazia parte da carga. O “Mourão” estatelado no seu encalhe, completamente paralisado, está à mercê do mar, que por vezes o cobre de lado a lado, inundando-o. De mais, o vapor deve estar fortemente arrombado, pelo que se perdeu toda a esperança de o salvar.
A não ser destruído pelo mar, terá de o destruir a mão humana, para lhe aproveitar os destroços.
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Houve quem estranhasse que os «galdropes» do leme rebentassem, dizendo por isso que não houvera cuidado em verificar o estado do vapor.
Esses reparos caem porém por terra, perante as declarações peremptórias da tripulação do navio. Este fôra reparado em Cardiff, e só depois da vistoria que o deu pronto a navegar, e que ele meteu carga, fazendo-se depois ao largo com rumo ao Porto. A partida de Cardiff foi efectuada no dia 5.
A quebra dos «galdropes» deu-se pela volta de mar, imprevista e violenta, fazer arribar o vapor para a direita, sobre a restinga, sem que houvesse tempo de evitar o encalhe. De resto a tripulação fez tudo para frustrar o sinistro. A avaria foi reparada – mas era tarde, pois nessa altura já o “Mourão” estava assente na areia. Foi então que se cuidou de salvar as vidas.
* * * * * * *
Ontem à tarde, o capitão do “Mourão” sr. João Fernandes Matias Queijeira, acompanhado de alguns tripulantes, como o mar tivesse amainado, conseguiu ir a bordo numa bateira dos pescadores da Afurada, demorando-se ali o tempo necessário para retirar do navio as roupas dos tripulantes e vários objectos de bordo.
Da restinga foi a manobra presenciada por muitas pessoas, sendo os tripulantes que foram a bordo felicitados pelo bom sucesso dos seus esforços, tanto mais que a arriscada proeza já na véspera havia sido tentada, sem resultado, devido ao mar embravecido que fazia.
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O relatório do sinistro, apresentado pelo capitão do “Mourão”, foi já entregue no Departamento Marítimo do Norte.
Os tripulantes do navio naufragado, ainda se encontram no Porto.
(In jornal “Comércio do Porto”, sexta-feira, 13 de Abril de 1928)

O vapor “Mourão"
O vapor carvoeiro “Mourão”, encalhado no Cabedelo, continua no mesmo lugar.
A tripulação do navio, com o respectivo capitão, sr. Queijeira, voltou ontem a bordo, a fim de retirar os restantes haveres, que ainda lá se encontravam, principalmente diverso vestuário.
A tarefa decorreu sem incidentes, conseguindo os tripulantes o seu objectivo. Na retrete de bordo, onde se tinham refugiado, foram encontradas, vivas, duas aves, um galo e uma galinha, que os tripulantes também trouxeram para terra.
Ao Cabedelo e Foz ainda tem ido bastante gente observar o vapor.
(In jornal “Comércio do Porto”, sábado, 14 de Abril de 1928)

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